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Mensagem por Nauta Dom Abr 28, 2019 9:31 pm

Contos Fantásticos Falkor10

Este tópico é dedicado a relatos fantásticos que tenham alguma coisa a nos (re)velar de acordo com a proposta do fórum.

A palavra "fantasia" é herança grega: "phantasia" (manifesto, visível), formado a partir do verbo "phaino" (iluminar, lançar luz, fazer aparecer) ou do substantivo "phos" (luminosidade). É uma origem comum à palavra "fenômeno". Assim sendo, aqui podemos tentar revelar aquilo que a incidência direta da luz da linguagem descritiva algumas vezes queima e desnatura.Sejam histórias autorais ou mitos conhecidos, coisas vividas ou imaginadas, sintam-se à vontade para compartilhar sempre respeitando a própria individualidade e a do próximo, e assumindo a responsabilidade total pelo que posta.

Deixo aqui um texto sobre fantasia que gosto bastante e com o qual me identifico (Fantasia - Alice Liquor), e logo abaixo a minha pequena fantasia sobre as histórias do mundo.

"Em uma antiga árvore brotavam vários galhos em todas as direções formando uma copa verdadeiramente extensa, de vários quilômetros. Aqueles que habitavam sob seus galhos periféricos viam o azul do céu e o brilho das estrelas, mas sofriam as vezes com o sol e com a chuva pela pouca proteção da folhagem espaça, e se nutriam pouco dos frutos mirrados e de fracas sementes que saim das pontas secas. Aqueles mais ao centro da circunferência que a copa criava gozavam de sombra, frescor e proteção da chuva; comiam os suculentos, robustos e nutritivos frutos que caiam dos galhos altos atirando suas promissoras sementes no chão e, as vezes, tinham a sorte de receber dos céus um galho fresco cheio da seiva medicinal da árvore, mas não conheciam nada nem acima nem abaixo de si, contavam indefinidamente com a sorte, e não viam nada de grandioso que brotasse vingar pois faltava luz do sol. Os que se aproximavam do centro, o ponto mais obscuro, úmido e silencioso da árvore por ser o ponto com a folhagem mais densa, conheciam a sua estrutura, viam as direções para onde as raízes se espalhavam quase como um mapa, conheciam os poderes curativos de sua seiva fresca, podiam escalar seu tronco, desbravar seus galhos, tomar os seus frutos por si mesmos, conhecer as aves e insetos que levavam as sementes para longe e, se tivessem coragem, ver o nascer e o pôr do sol e da lua quase entre as estrelas, onde o horizonte era a própria circunferência da terra."


Última edição por Aarin Federleicht em Ter Abr 30, 2019 8:33 pm, editado 2 vez(es)
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Mensagem por Nauta Dom Abr 28, 2019 9:44 pm

Conto de inverno


Contos Fantásticos Orphic11

Pai e filho viviam em uma pequena fazenda, juntos e sozinhos. A mãe morrera pouco depois do nascimento do menino, acometida por um mal respiratório trazido pelos últimos ventos do outono e que abateu alguns dos mais frágeis daquela região do mundo. Os vizinhos, não tão próximos como costuma ocorrer na cidade, foram solidários de inicio em confortar a reduzida família e ajudar o pai solitário, mas as trilhas que ligavam as fazendas pareciam ficar mais longas à medida que o inverno as percorria, as pegadas apagadas pelas chuvas. Assim, o homem teve que aprender a cuidar do menino, da terra e do próprio homem e, pela solidão, teve medo de perder cada uma dessas coisas.

O menino vingou os invernos protegido pelo calor do peito do pai e aproveitou as primaveras, verões e outonos sustentado pelas mãos do pai. Cresceu sem sentir falta de nada e sem esforço, sem ter que trabalhar um dia sequer nas tarefas da fazenda, assumidas todas pelo homem. Seus esforços eram guiados por sua simples curiosidade de criança, avido por conhecer o mundo ao redor. Tudo era estável e o mundo se lhe apresentava benevolente.

Ao se aproximar o nono inverno desde de a chegada da criança, num dia em que o homem trabalhava na ultima colheita daquele ano, o menino, brincando ao redor do campo, encontrou um pequeno ovo em meio as folhagens aos pés de uma árvore. Correu até seu pai para mostrar o ovo que havia fugido do galinheiro e se perdido na floresta, preocupado em coloca-lo de volta em seu lugar junto à mãe para que pudesse nascer. O homem sabia que aquele não era o ovo de galinha. Escondeu sua preocupação do menino e pediu que lhe apontasse o lugar onde encontrara o objeto. Em seguida, levou o menino até o escuro do quarto onde guardava suas ferramentas, acendeu uma vela e colocou o ovo contra a luz. O que apareceu para a criança, foi uma linha enrolada dentro da casca.

- Filho, este ovo não é das galinhas, é de um animal que você ainda não conhece, a serpente. Pelo tamanho é de um tipo que pode crescer bastante. Elas se alimentam de animais menores e são muito perigosas. Algumas podem matar com apenas uma mordida, outras podem se enrolar no corpo de um animalzinho até sufocá-lo. Elas trocam de pele, se escondem e podem se disfarçar de galhos de arvores e pedras. Quero que você tome muito cuidado quando estiver brincando lá fora.

O menino, ao invés de ficar assustado com o alerta do pai, teve sua curiosidade atiçada. Existia uma animal que nascia de ovos, mas que não era um pássaro, se parecia com uma linha enrolada e era capaz de trocar de roupa e se vestir de árvore e pedra. Pediu ao pai que cuidassem do ovo como faziam com os das galinhas, ele queria ver como era aquele bicho, o que fazia, como vivia. Partiu o coração do pai negar alguma coisa ao menino, mas mandou a criança com a cara emburrada para casa, guardou o ovo em uma caixa no quarto de ferramentas, e voltou para o campo. Antes de o sol se pôr, armado de sua foice, foi até o lugar que o menino apontou e encontrou o ninho nas raízes de uma arvore logo acima do local da descoberta. A cobra mãe tinha a mesma cor do tronco que a escondia. Sozinho, o homem não hesitou em proteger sua própria família.

Naquela noite, o homem dormiu cedo querendo deixar para trás o cansaço do trabalho e a tensão do dia. Ao buscar suas ferramentas na manhã seguinte, pronto para concluir seu trabalho, o homem se lembrou da caixa e do ovo. Ao abrir a tampa, pronto para se livrar de seu conteúdo, viu que a cobra havia nascido. Era um animal surpreendente para um recém-nascido, totalmente formado, de uma cor tão escura que os padrões de sua pele eram quase imperceptíveis. Não podia dar um fim àquilo antes de mostrar ao filho.

Quando o menino viu aquilo, seu entusiasmo parecia não ter limites. Que animal curioso: comprido; brilhante; sem pernas, mas ágil; nascido de um ovo. Ele queria saber tudo sobre a criatura, queria ver como aquilo crescia. Para o homem, o brilho nos olhos do menino era o que surpreendia. Os apelos da criança derreteram com facilidade sua resolução e ele pensou: por que não? Seria uma boa oportunidade para o menino aprender sobre o mundo e as coisas da natureza de forma segura, controlada pelo pai. Ele ficaria responsável pela alimentação e cuidados também do animal até que fosse seguro para o menino.

Assim se passaram mais nove anos. O pai trabalhava por ele, pelo menino e pela fazenda. O menino observava, aprendia e imaginava o mundo. A serpente crescia sem muita perturbação dentro de uma cristaleira adaptada em aquário no quartinho de ferramentas, sob o olhar de um e cuidados do outro.

Uma noite, perto do nono inverno depois da descoberta do ovo, após um longo dia de trabalho perto da ultima colheita, o homem foi alimentar a serpente. Sua barba já era branca pelo cansaço; sua pele queimada pelo sol era bastante enrugada e, seca, parecia um mosaico; sua coluna curvada já começava a ceder ao peso dos anos. Por todo aquele tempo nunca deixou a serpente aos cuidados do filho, ainda o enxergava como um menino. Naquela noite, ao abrir a porta da cristaleira para atirar lá dentro um camundongo recém abatido no celeiro, aquele senhor viu suas vistas escurecerem, sentiu seu corpo ficar leve e parecer rodar no ar até não perceber mais nada.

Quando acordou estava em um lugar escuro e com o corpo apertado, imobilizado, como se vestisse uma camisa de força. Tentou se mexer e ouviu ecoar em seu crânio um grito sibilante de dor:

- O que está fazendo dentro de mim? Por que me provocas dor?
- Dentro de quem? Quem fala dentro de minha cabeça?
- Sou a serpente que criaste desde ovo. Não falo de dentro de tua cabeça, mas tu me ouves desde meu interior. Te engoli inteiro quando vi teu corpo inerte caído no chão, pensei que era a oferta do dia, um presente.
- Monstro traiçoeiro! Me cospe para fora já ou acabo com tua existência imunda!
- Não posso fazer isso pois conheço tuas intenções. Sinto o cheiro de teu medo desde o início, vais matar-me ainda que te deixe sair. Tu já estás velho e não tens força para fugir ou me abrir por dentro.
- Serpente ingrata! Te alimentei e cuidei desde sempre e é assim que me retribuis, me devorando?
- Não me cuidastes por amor a mim, mas por teu filho, pois esta é tua natureza. Minha natureza é devorar e não posso ir contra ela. Te devoro e devorarei tudo aquilo que se apresentar a mim como presa.
Só então o homem sentiu a ira dar lugar ao pavor. Seu filho estava na fazenda e a serpente estava livre.
- Não permitirei jamais que devores meu filho! Posso não ter forças para sair, mas se sentir que estás a me digerir, te causarei enorme dor até que não mais suportes.

A serpente refletiu. Não podia libertar o homem, pois morreria. Não podia comer nada enquanto ele estivesse ali, pois não havia espaço. Não podia dissolver o homem rapidamente pois ele podia lhe causar uma dor verdadeiramente intensa, e não queria isso. Ele era uma presa grande e robusta, poderia nutri-la durante muito tempo se ela soubesse administrar sua condição. Com sua melhor voz de desdém a serpente anunciou ao homem:

- Faz como quiseres, não te deixarei sair. Tua força agora tende apenas a diminuir. Tu já compartilhas da minha natureza, de outro modo não poderias me ouvir, e será cada vez mais assim.

E assim a cobra se arrastou lentamente para a mata que circundava a fazenda.

Na manhã seguinte o rapaz não deu falta do pai e cuidou da casa. No almoço, estranhou a ausência e durante a tarde saiu em sua procura. Percorreu toda a fazenda sem nada encontrar. Com o sol se pondo, voltando ao lar, viu as pegadas das botas do homem na entrada do quarto de ferramentas que tinha a porta aberta. Entrou chamando pelo pai, acendeu uma lamparina e o que viu foi a cristaleira aberta e um grande rastro na poeira e serragem do chão. Uma série de pensamentos aterradores invadiram sua mente por apenas um segundo: a imagem de seu pai sozinho naquele quarto com a serpente a solta; um animal agonizante encolhido num canto da cristaleira; o bote certeiro num camundongo. Foram pensamentos que surgiram e não tiveram tempo de se instalarem na consciência do rapaz, afundando rápido no mar de terror que paralisou seu corpo no lugar. Assim que pode, o menino agarrou uma foice que estava próxima e correu para casa. Fechou todas as portas e todas a janelas e se encolheu no quarto tremendo de medo. A serpente poderia estar em qualquer lugar, devia ter cuidado. E seu pai... ficaria muito desapontado quando soubesse que o animal havia fugido.

Durante todo aquele inverno o rapaz ousou sair de casa apenas nos primeiros dias, a procura do pai. Depois se trancou em casa, devorando as provisões já estocadas para o período e sendo devorado pelo medo. Ao fim do inverno, a escassez batia à porta, não sabia racionar a comida dos animais e desperdiçara um tanto. Ele mesmo não sabia caçar e a ultima colheita não foi completa.

Na primavera, se atreveu sair, sempre com a pequena foice na cintura, absolutamente alerta ao ambiente que o cercava. Tudo o assustava. A serpente poderia estar em qualquer lugar, poderia pegá-lo pelo pé no próximo passo, poderia emboscá-lo a partir de qualquer árvore. Colheu as primeiras frutas que surgiram e tentou fazer armadilhas para os pequenos animais que saiam de suas tocas. Não sabia plantar, mas fez o melhor que pôde com uma pequena horta nos fundos de casa. Durante o ano vendeu quase todos os animais da fazenda pelo preço que pode a quem quisesse comprar.

Quando as coisas apertaram, pediu ajuda aos vizinhos. Mentiu que o pai estava doente, que a colheita do ano anterior foi pobre e deu sementes ruins. Disse que a fazenda era grande de mais para um homem só cuidar. Despistou todos que pretenderam fazer uma visita ao velho homem e ninguém desconfiava, afinal os dois sempre foram pessoas reclusas. Trabalhou nas fazendas da região que receberam aquele menino inexperiente, fraco e medroso por pura consideração ao antigo amigo, seu pai, que não viam havia muito tempo.

Aquele foi o ano mais duro da vida do rapaz. Teve que cuidar de si mesmo, aprender tudo o que não aprendera em seus dezoito anos sobre cuidar de uma fazenda, enfrentar seus medos em silêncio convivendo com o fantasma da serpente, e lidar com a solidão de estar no mundo tendo que prover para si mesmo.

No ano seguinte, com a experiência que adquiriu, passou a cuidar da sua própria produção, no solo que era de sua família. Conheceu cada canto de sua fazenda, se familiarizou com cada ferramenta e cada possibilidade e necessidade de trabalho que havia ali. Aprendeu a se precaver, seu medo fazia com que tivesse o máximo de cuidado em cada atividade. Cuidava não só de sua segurança, mas também da organização das coisas e da casa, pois ainda imaginava que seu pai podia voltar a qualquer momento. Nos dias frios esse pensamento o perturbava um pouco mais, alguma coisa na ideia o incomodava até que conseguisse dormir. Então sonhava que estava no meio do campo, e a voz de seu pai chamando de dentro da escuridão da mata cerrada que circundava a fazenda.  Quando acordava nunca lembrava do inicio ou do fim do sonho e estava mais preocupado com as questões práticas da produção e da segurança.

Assim passaram os anos. O menino virando homem e aprendendo a cuidar da casa para a chegada de seu pai, cultivar a fazenda e se precavendo da serpente. Com o tempo sua vida se moldava a todo aquele lugar, cada movimento que antes lhe era trabalhoso se tornava sua natureza e, para além da necessidade, seu aprendizado lhe permitia produzir para seu próprio conforto.

No nono outono desde a partida de seu pai, após a ultima colheita, o homem se preparava para dormir. Entrou no quarto coberto por uma coberta de lã, numa mão uma vela que deixou acesa sobre o criado mudo, na outra a foice de cabo cumprido para a colheita, que deixou encostada na cabeceira, ao alcance da mão. Naquela noite sonhou que estava no meio do campo e tudo o que se ouvia era o farfalhar da mata com o vento, que conversava com ele.

Do lado de fora da casa havia o som de uma serpente que se arrastava, tão grande que dava uma volta completa na casa. Sua boca encontrou a calda exatamente sob a janela do quarto em que o dono da fazenda dormia. Ela ergueu sua cabeça negra olhando pela janela e, por mais um ano, observou o homem dormir na noite de seu aniversário.
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Mensagem por Nauta Seg Jun 24, 2019 8:41 pm

Invicto



Contos Fantásticos _1063910

Para uma criança que cresça cercada pela natureza, o mundo é campo aberto a todo tipo de aventura. E o pequeno Jair, pelo que sei, não era diferente de nenhuma criança que conheci. De imaginação muito viva, brincava com o que tinha à mão tirando as histórias mais mirabolantes possíveis dos pequenos acontecimentos do canto do mundo onde morava. Cresceu, vejam bem, em uma casinha enfiada no meio do mato, um pequeno roçado que seus pais cuidavam também com a ajuda dele, onde o único acesso era uma estradinha de chão batido aberta e mantida pelos pés de quem, de tempos em tempos, passava ali.

Além de se enfiar pelo mato pra desbravar um mundo que mudava a todo tempo se mantendo sempre o mesmo, a maior alegria de Jair era ouvir os causos que os compadres de seus pais contavam quando visitavam o roçado ou eram visitados por sua família. Em especial um desses compadres, seu próprio padrinho, um senhor já de idade que fora amigo de seu avô, que contava, entre um pedaço de rapadura, um bolo de fubá e um cafezinho no meio da tarde, causos dos tempos em que o povo começou a chegar por aquelas bandas. Eram histórias de visagens, bolas de fogo, redemoinhos de vento assombrados, e lugares escondidos entre as arvores ou no meio da terra difíceis de encontrar e mais difíceis ainda de sair, arranjados Deus sabe por quem muito tempo antes daquela comunidade rural se estabelecer.

- Essa terra já engoliu muita gente, meu filho. Tu toma cuidado quando tiver pelo mato se ver algum sinal dessas coisas que te conto.

O menino ouvia as histórias, mas nem tanto o conselho. Vivia distraído, correndo de um canto para outro aproveitando a liberdade que seus pais lhe davam e o tempo que Deus lhe emprestava, se enfiando no mato para viver as histórias, em sua imaginação, que ouvia do padrinho. E foi numa dessas que, me disse que ele, acabou vivendo de verdade uma história própria que se tornou a primeira a ser contada aos pequenos que, mais tarde, se achegassem aos seus pés.

Diz ele que, num dado dia, ainda menino, em que acordou antes do sol para caçar preás, se embrenhou no mato procurando rastro do pequeno bicho. Suas armas eram um estilingue para atordoar e um espeto de madeira para abater e carregar. Por sorte não demorou muito para encontrar um deles dando sopa, não tão longe de sua casa. Tentou acertar o bicho com o estilingue, mas errou por pouco e o preá saiu em disparada. Sem se abalar, foi com cuidado seguindo a trilha deixada pelo animal e o encontrou parado em frente a uma toca, um buraco no chão aos pés de uma árvore. O que chamou sua atenção, no entanto, foi uma borboleta pousada sobre a entrada da toca, em uma raiz. Era a coisa mais bonita e curiosa que ele já tinha visto. Ela era grande, quase do tamanho de um pequeno passarinho. Suas assas abertas eram de um colorido que ele não sabia definir pois mudavam de tom com os raios de sol e, ao se moverem, pareciam feitas de um tecido delicado. Impressionado pela visão e distraído como era, deu um passo à frente em direção à toca assustando o preá, que se escondeu no buraco rapidamente, e fazendo com que a borboleta levantasse voo. Ele conta que a visão daquelas asas coloridas prendeu sua atenção de tal modo que ele não conseguia pensar em mais nada, como se estivesse enfeitiçado. Começou a seguir a borboleta que voava com tranquilidade por entre as árvores, deixando para trás a caça, a trilha, sua casa e os conselhos do padrinho.

Andou assim por não sabe quanto tempo, com os olhos vidrados no colorido, tropeçando em raízes de árvores, indo cada vez mais para dentro da mata fechada. Quando deu por si estava de frente a uma gruta ou caverna aberta aos pés de um barranco, a borboleta voando para dentro da escuridão, seu colorido desaparecendo e quebrando o encanto. Olhou em volta e não fazia ideia de onde estava, nunca tinha se enfiado tão fundo no mato. Olhou para cima e o sol parecia não ter se movido, o tempo não havia passado. Confuso com tudo aquilo, deu as costas para a gruta e se preparou para procurar a trilha de volta por onde viera. Foi quando aconteceu: o vento brando daquela manhã, que sacudia o alto das copas das árvores, se intensificou e começou a soprar forte levantando poeira e folhas do chão. Jair levou os braços ao rosto para proteger os olhos, mas ainda pode ver o redemoinho que se formou em sua frente, enorme e rápido, se movendo em sua direção. Ao atingir o peito do menino o redemoinho teve impacto como de dois braços fortes que o elevaram do chão e arremessaram para dentro da escuridão onde a borboleta colorida havia se escondido.

A queda não foi tão dura, pelo menos não tanto quanto o choque daqueles acontecimentos. Sinceramente, Jair não sabia nem o que pensar sobre tudo aquilo, a surpresa não lhe permitia refletir muito. Estava simplesmente imerso na impressão do absurdo da sequência de infortúnios que continuavam a acontecer.

Se levantou batendo a poeira da roupa e tentando enxergar o que havia ao redor. A entrada da caverna por onde ele caíra, que parecia ser a única fonte de luz alí, ficava no topo de uma parede lisa, não tão alta, mas que ele, daquele tamanho, ainda não era capaz de alcançar. O teto baixo, quase no mesmo nível da entrada, ia ficando cada vez mais alto até se perder num corredor que se estendia diante do rapaz, imerso em escuridão. O menino ficou ali por um tempo, procurando um meio de alcançar a saída, sem nenhum sucesso, e gritando por ajuda, sem nenhuma resposta. O jeito, pensou ele, era ver se não tinha nenhuma outra saída por ali. Não gostava muito da ideia de entrar no escuro da terra sozinho, embaixo do chão era o reino dos mortos que povoavam as piores histórias que os mais velhos contavam, mas se a borboleta entrou, talvez tenha saído pelo outro lado. Estufou o peito de ar pra se convencer que tinha coragem, disse pra si mesmo que não ia muito longe na escuridão, e começou a caminhar para dentro da caverna tateando a parede para ter um ponto de referência.

De inicio alguma coisa ainda podia ser vista pela luz da entrada atrás de Jair, mas não demorou muito até que o breu completo envolvesse o menino. A vontade de voltar era enorme, os passos eram pequenos e vacilantes, mas ele se convencia que ia caminhar só mais um pouquinho, só mais alguns passos para ter certeza se havia alguma saída mais à frente. O chão era de uma terra fofa e não oferecia empecilhos para a caminhada. O ar úmido ia ficando cada vez mais pesado e parado, o silêncio se fazendo tão presente quanto a escuridão, sendo quebrado apenas pelos barulhos da respiração e caminhada do próprio Jair. A parede em que se apoiava começou a fazer curvas que ele se esforçava para prestar atenção caso tivesse que voltar. E foi numa dessas curvas que a escuridão também foi quebrada: no teto, pequenos pontos esverdeados brilhantes começaram a aparecer. Logo imaginou que fossem vagalumes, um sinal que por algum motivo deu mais firmeza às pernas do menino que já tremiam de agonia. Afinal havia vida ali dentro. À medida em que foi avançando mais pontos apareceram até que o teto estivesse coberto por eles até onde se podia enxergar. Parecia um céu estrelado, um caminho marcado acima do chão.

Respirando aliviado por ter pelo menos uma trilha a seguir, o menino deu mais firmeza aos passos e a caminhada tomou ritmo. A luz que vinha de cima não iluminava quase nada, mas era o suficiente para definir onde estava o teto, muito alto, e as paredes. A vida, no entanto, não facilita, e logo o chão fofo foi dando lugar a rocha lisa de onde ele conseguia enxergar apenas fracas silhuetas de estalagmites, pouco antes de tropeçar, na quase inexistente luz verde. E como se não bastasse, depois de tanto tempo de caminha já distraída das curvas do caminho, surgiu uma bifurcação. “Poxa vida, como eu posso ser tão cabeça de vento pra parar de prestar atenção no caminho dos meus pés e pensar apenas no caminho de estrelas acima da minha cabeça, que eu nem posso tocar?”. O pequeno Jair se sentou no quase escuro, tentando decidir que caminho tomar. Rezou pro seu anjo da guarda, fez promessas que nem ele sabia se poderia cumprir a todo santo que lembrou para que lhe desse sinal do que fazer. Nenhuma resposta veio, apenas os pensamentos acelerados do menino passavam pela escuridão, as vezes preocupado com seu destino, as vezes simplesmente vagueando em qualquer besteira. Dentre os devaneios veio uma das histórias de seu padrinho em que ele contava justamente de uma vez em que se perdeu no mato e não adiantava o quanto andasse, sempre voltava pro mesmo lugar, e o que o salvou foi o cheiro do bolo de fubá que sua esposa preparava naquela tarde, que ele seguiu de olhos fechados até a porta de casa. Eis que a mente do menino se iluminava com alguma ideia. Não era nada certo, mas valia a pena tentar. Levantou-se, deu alguns passos no primeiro caminho, fechou os olhos, inalou fundo algumas vezes e não sentiu nada de diferente. Voltou alguns passos, entrou no segundo caminho e repetiu o processo. Era quase imperceptível, tanto que ele não sabia se estava imaginando, mas o ar ali tinha um cheiro meio doce e enjoado de coisa podre. Decidiu seguir o olfato e partiu pelo caminho de ar mais puro.

Sete bifurcações apareceram e sete vezes ele usou o mesmo método, deixando que o olfato lhe indicasse o caminho de ar mais puro. Desta vez contou, sem distrações, cada uma das escolhas que fez, memorizando o caminho, criando um mapa na cabeça.

Finalmente, após a sétima escolha, o caminho voltou a ser um corredor, o teto foi ficando cada vez mais baixo e o trecho mais à frente ficou bem mais iluminado. Surpreso, Jair apertou o passo achando que tinha encontrado uma saída apenas para descobrir que, na verdade, não havia mais chão: à sua frente o que se estendia pelo corredor era um tipo de lago que ia até onde podia enxergar, com a agua iluminada da mesma cor das luzes teto. Olhando para cima ele percebeu então que aquelas luzes, agora mais próximas, eram filetes que pendiam de larvas presas no teto de onde as vezes uma gota luminosa caia.

Depois de tanta caminhada, o menino tinha menos segurança de voltar do que de seguir caminho. Lembrava de cada trilha escolhida nas bifurcações, mas antes disso havia andado a esmo na escuridão. Estufou mais uma vez o peito com ar e com toda a segurança que as tardes nadando nos rios e açudes da região lhe davam, entrou na água brilhante disposto a atravessa-la, um pé depois do outro. O começo era raso, mas logo o caminho ficou fundo o suficiente para que ele tivesse que realmente nadar. A água era morna e tranquila, dava uma sensação enorme de serenidade; tinha um cheiro doce que nunca tinha experimentado antes; ao toque dos lábios tinha um sabor fresco, de saciedade. Nadou num ritmo lento para não se cansar, e a própria água de algum modo lhe permitia que boiasse sem grandes problemas. Jair estava tranquilo. Muito tranquilo. Tão tranquilo quanto se lembrava de já ter sentido um dia. Tão tranquilo que cada vez menos queria fazer o esforço de nadar e apenas boiava por bastante tempo. Naquela semi-escuridão, suspenso em fluído morno e sereno, sem qualquer barulho para incomodar, o menino começou a sentir seu corpo dissolver e a mente se espalhar pela água. As imagens dos seus pensamentos desta vez se projetavam literalmente no vazio, ele podia ver o que pensava e se mover pelas imagens através das emoções que elas lhe traziam. Jair estava se derramando e nem percebia.

O coração batia cada vez mais devagar, a respiração cada vez mais lenta, e as imagens que projetavam no vazio começaram a se apagar uma por uma, como estrelas queimando até o fim, até que uma imagem sobrou: a varanda da casa de sua casa onde seu pai sentava para descansar no fim de tarde e sua quanto sua mãe bordava e cantava alguma cantiga antiga. A saudade que apertou em seu coração fez a imagem ficar mais próxima e mais viva, mais brilhante que a água ou o teto. Esse aperto fez seu coração bater forte de novo e o ar invadiu seus pulmões. Em um lampejo de consciência o menino percebeu que estava começando a afundar e voltou a bater braços e mãos rapidamente. Ao seu redor, seus pensamentos acelerados ainda apareciam como assombrações coloridas, mas ele se esforçava por lembrar da varanda de casa. Nadou com a força que tinha, com o ar que tinha e na direção daquele lugar que era o único porto que valia a pena chegar. O esforço era do corpo e ele via se aproximando no corredor alagado o seu ponto de chegada, mas era o coração que lhe aproximava da margem. Chegou do outro lado no fim de suas forças físicas, mentais e emocionais, encharcado daquela água brilhante que lhe fazia ter todo tipo de visagens. Tirou a roupa para se livrar da água tóxica e se deixou cair vendo seu mundo interno girar dentro da caverna, lavando os olhos com lagrimas.

Levou tempo até que as visões diminuíssem ou ao menos pareceu levar. Jair viu sua vida toda de novo, estivesse com os olhos fechados ou abertos, e sentiu cada momento com o dobro de intensidade. Quando finalmente se recuperou um pouco e conseguiu distinguir a caverna real da sua imaginação e dos seus sentimentos, levantou-se e decidiu mais uma vez continuar a caminhada. Desta vez não podia decididamente continuar, não podia entrar novamente naquela água. O único caminho era para frente.

Seus passos agora eram guiados, pelo toque da parede onde se apoiava, por seu nariz e por um sentimento de familiaridade que não sabia explicar. Em sua mente confusa a caverna se misturava com a sua casa, e com sua mãe, e com a palma de sua mão, coisas que ele conhecia tão bem que tinha a sensação de ser impossível se perder. As luzes no teto começaram a diminuir no caminho até desaparecerem.

Jair enxergava o caminho sem saber como enxergava. As paredes da caverna pareciam brilhar com uma luz vermelha, como se fosse vidro atingido por algum tipo de luz. O som dos seus passos era muito alto e reverberava em todo canto. O ar mudava sutil mas perceptivelmente à medida em que avançava, ficando mais limpo. Parou um instante para descansar em meio a essa intensidade de sentidos e começou a ouvir, de algum lugar bem perto, uma respiração pesada, meio chiada. Olhou ao redor e o som ficava mais forte quando olhava na direção de onde tinha vindo. Parecia um animal fungando forte, farejando alguma coisa. O barulho foi ficando mais alto e o coração do menino acelerou como se também aumentasse de volume. Era melhor sair dali. Voltou a caminhar e ouviu, junto com seus passos o barulho de alguma coisa se movendo atrás de si. Começou a correr cambaleando a criatura surgida Deus sabe de onde começou a correr também, lhe perseguindo. Ao seu lado uma sombra enorme crescia, como de um lobo, cada vez mais próxima. O barulho de seus latidos era tão alto que pareciam estar nos ouvidos do menino. Ele pensou por um instante em desistir, mas correu ainda assim, sem forças e sem saber por que, mas correu simplesmente por que tinha que correr. Viu uma luz surgir à frente, sentiu o ar ficar mais limpo e finalmente irrompeu em uma câmara iluminada da caverna, um beco sem saída. Sem ter o que fazer, encurralado, nu e de mãos vazias, se virou para enfrentar com o resto de coragem que tinha, que era a simples vontade de viver, a fera e seu destino.

Nada aconteceu. Apurando a visão, o que estava à frente do pequeno Jair era o corredor de onde tinha saído, completamente escuro, sem luz vermelha ou qualquer lobo ou fera. No espaço mais aberto em que se encontrava, percebeu que a respiração chiada era sua própria que momentos antes fazia eco nas paredes escuras do corredor. Os latidos eram as batidas de seu coração descompassado. Tudo aquilo aumentado pelo restinho de efeito que a aquela água estranha havia causado.

A câmara onde se encontrava agora era perfeitamente circular e ampla. No teto, exatamente sobre sua cabeça, havia uma abertura redonda sobra a qual o sol incidia diretamente. Olhou ao redor e todas a sua sombra havia se dissipado naquela fonte de luz. Em quatro direções daquele círculo haviam estatuas, igualmente distantes de Jair, cada uma com as mãos estendidas. Uma delas segurava um globo de ouro, a outra uma safira, a terceira um rubi e a quarta um diamante.

Tudo aquilo foi de mais para o menino e ele caiu exausto no chão. Ouviu vozes chamando seu nome e, no limar da consciência, viu uma corda descer do buraco do teto, lhe envolver e lhe puxar para cima, lhe tirando de dentro de um poço de pedra.

Quando acordou estava na cama de casa, sua mãe agoniada na cabeceira rezando um terço. Vendo o menino acordado ela chamou o marido, chorou e agradeceu a Deus. O que lhe contaram é que ele foi encontrado no meio da mata com a roupa em farrapos e alguns machucados perto do sitio de um dos compadres de seu pai. Havia demorado um dia inteiro pra acordar.

Jair ficou em silencio e não contou a ninguém o que tinha vivido. Não sentia vontade. Disse à mãe que não se lembrava. Dias depois, já recuperado, saiu sozinho sob os protestos da mãe em direção à casa do padrinho, no fim da tarde, esperando lá encontrar um pedaço de rapadura, um bolo fubá, um café e os ouvidos atentos do padrinho.
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Contos Fantásticos Empty Proposta e Exercício até o Lughnasadh

Mensagem por Nauta Qua Jan 22, 2020 1:37 am

Boa noite, pessoal.

Bom, como contador de histórias eu sou um mal tratante, pelo que parece. Mas essa vida de coletar causos, contar lorotas e... bem... viver anedotas, as vezes tira a gente do trilho. Esses dias mesmo mesmo me peguei parado num hotel, uma verdadeira Pedra do Caminho, pra ouvir a história de uma lenda viva sendo contada a um colega. Vocês acreditam que o homem que contava a história alegava que não sagrou ao receber umas chibatadas nas costas, queimou uma cidade, dormiu com uma fada e... Bem, isso não importa. O que importa é que estamos aqui.

A primeira colheita se aproxima e preparativos se fazem necessários, não posso postar as histórias que nos faltam exatamente agora. Mas quero sugerir um exercício para cada um de nós em preparação para o festival que se aproxima, o Lughnasadh.

Lugh é um jovem guerreiro com uma história de vida espetacular que começa antes mesmo de sua concepção. Seu feitos são maravilhosos, seu sofrimentos não são poucos, mas suas vitórias são grandiosas. O que poemos ver claramente em sua história sem nos alongarmos muito nos fatos é que, cada desfecho de arco em uma história, é o fruto da semente plantada junto com a primeira palavra dita em sua contação. A realização da profecia da morte de Balor só foi possibilitada pela própria declaração da profecia, um pedaço da história contada antes de acontecida, vejam bem. Eu sempre me pergunto o que teria acontecido se a profecia não tivesse sido feita...

Mas enfim... Eu gostaria e propor para aqueles que puderem e quiserem que exercitem sua capacidade de contar histórias, e nada melhor para isso que uma história que conhecemos bem: a nossa própria história. A partir do momento que ler este post até o dia do ritual, contem suas histórias para vocês mesmos sempre que tiverem um tempo. De preferencia em silêncio quando estiverem em companhia de alguém, mas se quiserem falar sozinhos, fiquem à vontade Very Happy . Um jeito que eu gosto muito de fazer isso é imaginar diálogos (sério, eu sempre penso em forma de diálogos, minhas reflexões mais profundas são nesse formato) em que eu explico para alguém os meus pontos de vista sobre um assunto ou caso específico.

Tá bom que todos nós conhecemos nossa própria história, ué, pra que fazer isso? Bom, eu quero pedir mais duas coisas: a primeira é que a contação seja livre... comecem do começo e progridam até os dias de hoje, claro, mas não deve ser uma narrativa mecânica, uma simples transferência de dodos, mas que seja o contar de uma história como quem conta para um amigo suas alegrias e provações, andando por onde a história te levar em cada vez que contar. Há dias em que um assunto e um sentimento está mais presente e nós queremos falar mais sobre ele e suas origens, ou um acontecimento nos faz lembrar de um fato engraçado.... Contem a história como quem a viveu e não como quem observa apenas.
A segunda coisa é: duvidem. Naqueles pontos definidores, aqueles em que os afetos emergem e geralmente nós contamos com mais entrega e verdade, aqueles que nos moldaram ou moldaram nossa situação atual, quando perceberem esses momentos parem e pensem: será? Elaborem sobre, reflitam, guardem para pensar mais em outro momento, respondam ao "será" ou não respondam.... Mas deem atenção e se perguntem por que esses pontos são importantes, como eles são, o que você percebe deles, como você os define, quais sentimentos estão ligados a eles e às pessoas e elementos envolvidos. Perguntem o que vocês têm a ver com isso. Vocês são personagens da história, os principais, na verdade.... o que esse personagem tem a ver com essas coisas?

Bom, este é um exercício para os fortes dos nervos, mas eu confio que conseguiremos. Se cuidem, meus queridos. Que Lugh torne suas mentes tão afiadas como uma espada.
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Mensagem por Nauta Ter Nov 02, 2021 7:08 pm

Excerto de O Alquimista de Paulo Coelho

Contos Fantásticos Narcis11

O Alquimista pegou um livro que alguém na caravana havia trazido. O volume estava sem capa, mas conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde. Enquanto folheava suas páginas, encontrou uma história sobre Narciso.

O Alquimista conhecia a lenda de Narciso, um belo rapaz que todos os dias ia contemplar sua própria beleza num lago. Era tão fascinado por si mesmo que certo dia caiu dentro d’água e morreu afogado. No lugar onde caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.

Mas não era assim que Oscar Wilde acabava a história. O autor dizia que, quando Narciso morreu, vieram as Oréiades – deusas do bosque – e viram o lago transformado, de um enorme espelho de água doce em um cântaro de lágrimas salgadas.

– Por que você chora? – perguntaram as Oréiades.
– Choro por Narciso – disse o lago.
– Ah, não nos espanta que você chore por Narciso – continuaram elas. – Afinal de contas, apesar de todas nós sempre corrermos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza.
– Mas Narciso era belo? – perguntou o lago.
– Quem mais do que você poderia saber disso? – responderam, surpresas, as Oréiades. – Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias.

O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
– Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que ele era belo.
“Choro por Narciso porque todas as vezes que ele se debruçava sobre minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida.”

“Que bela história”, disse o Alquimista.



COELHO, Paulo. O Alquimista. 1. ed. São Paulo: Paralela, 2017. 208 p. ISBN 978-85-8439-067-0.
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Mensagem por Nauta Seg Nov 15, 2021 7:54 pm

OGUM
Ogum Yêêê!

Extraído do livro "Lendas Africanas dos Orixás" de Pierre Verger

Ogum era o mais velho e o mais combativo dos filhos de Odudua,
o conquistador e rei de Ifé.
Por isto, tomou-se o regente do reino quando Odudua,
momentaneamente, perdeu a visão.
Ogum era guerreiro sanguinário e temível.

"Ogum, o valente guerreiro,
o homem louco dos músculos de aço!
Ogum, que tendo água em casa,
lava-se com sangue!"

Ogum lutava sem cessar contra os reinos vizinhos.
Ele trazia sempre um rico espólio de suas expedições,
além de numerosos escravos.
Todos estes bens conquistados, ele entregava a Odudua, seu pai, rei de Ifé.

"Ogum o violento guerreiro,
o homem louco, dos músculos de aço.
Ogum, que tendo água em casa,
lava-se com sangue!"

Ogum teve muitas aventuras galantes.
Ele conheceu uma senhora, chamada Elefunlosunlori"
aquela-que-pinta-a-cabeça-com-pó-branco-e-vemelho.',
Era a mulher de Orixá Okô, o deus da Agricultura.
De outra feita, indo para a guerra, Ogum encontrou, à margem de um riacho,
uma outra mulher, chamada Ojá, e com ela teve o filho Oxóssi.
Teve, também, três outras mulheres que tomaram-se, depois, mulheres de Xangô,

Kawo Kabieyesi Alafin Oyó Alayeluwa!
Saudemos o Rei Xangô, o dono do palácio de Oyó, Senhor do Mundo!"

A primeira, Iansã, era bela e fascinante;
a segunda, Oxum, era coquete e vaidosa;
a terceira, Obá, era vigorosa e invencível na luta

Ogum continuou suas guerras. Durante
uma delas, ele tomou Irê.
Antigamente, esta cidade era formada por sete aldeias.
Por isto chamam-no, ainda hoje, Ogum mejejê lodê lrê "Ogum
das sete partes de Irê"
Ogum matou o rei Onirê e o substituiu pelo próprio filho,
conservando para si o título de Rei.
Ele é saudado como Ogum Onirê! "Ogum Rei de Irê!"
Entretanto, ele foi autorizado a usar apenas uma pequena coroa, "akorô".
Daí ser chamado, também, de Ogum Alakorô - "Ogum dono da pequena coroa"

Após instalar seu filho no trono de Irê,
Ogum voltou a guerrear por muitos anos.
Quando voltou a Irê, após longa ausência, ele não reconheceu o lugar.
Por infelicidade, no dia de sua chegada, celebrava-se uma cerimônia,
na qual todo mundo devia guardar silêncio completo.
Ogum tinha fome e sede.
Ele viu as jarras de vinho de palma,
mas não sabia que elas estavam vazias.
O silêncio geral pareceu-lhe sinal de desprezo.
Ogum, cuja paciência é curta, encolerizou-se.
Quebrou as jarras com golpes de espada e cortou a cabeça das pessoas.

A cerimônia tendo acabado, apareceu, finalmente, o filho de Ogum
e ofereceu-lhe seus pratos prediletos:
caracóis e feijão, regados com dendê;
tudo acompanhado de muito vinho de palma

"Ogum, violento guerreiro,
o homem louco dos músculos de aço.
Ogum, que tendo água em casa,
lava-se com sangue!"

"Os prazeres de Ogum são o combate e as brigas.
O terrível orixá, que morde a si mesmo sem dó!
Ogum mata o marido no fogo e a mulher no fogareiro.
Ogum mata o ladrão e o proprietário da coisa roubada!"

Ogum, arrependido e calmo, lamentou seus atos de violência,
e disse que já vivera bastante,
que viera agora o tempo de repousar.
Ele baixou, então, sua espada e desapareceu sob a terra.
Ogum tomara-se um orixá


Última edição por Aarin Federleicht em Qui Fev 03, 2022 8:45 pm, editado 1 vez(es)
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Mensagem por Nauta Sáb Dez 11, 2021 3:41 pm

A Flauta de Moisés


Ao elaborar para esta postagem, me lembrei desta história. Deixo abaixo uma versão em tradução livre para o português, mas indico que vejam o vídeo, até pela imersão com a musica. É uma contação muito bonita.

Essa melodia pode ser cantada junto com o Salmo 30 que Davi escreveu e que o Rei Salomão cantou no dia da consagração do templo. Quando Salomão finalizou a construção do templo e todos estavam lá para a consagração esperando que a presença divina, que a Glória de Deus se revelasse, as preces não foram atendidas. E Salomão rezou novamente e as pessoas rezaram, mas as preces não foram atendidas e a Glória de Deus não se revelou. Então Salomão cantou esta canção de seu pai, o Rei Davi, com a orquestra, dizendo "por favor, Deus, pelo mérito de meu pai, Rei Davi, que escreveu esta canção, deixe sua Glória brilhar de Jerusalém para todo o mundo".

É dito no Talmud que, no tempo do Segundo Templo, 2000 anos atrás, que os sacerdotes que trabalhavam no templo tinham uma flauta dos tempos de Moisés que se chamava "Abuv Shel Mosheh"¹, o Oboé de Moisés. "Oboé" naquela época queria dizer "flauta", a palavra "Abuv" vem do fato de ela ter buracos.
Bem, esta flauta é bem simples. Dizem que era feita de caniço. Era um tipo de flauta simples de madeira como esta. Não tinha nenhum tipo de mecanismo, não era de prata nem de ouro.
Então, as oferendas e as cerimônias no templo eram extremamente elaboradas e esplêndidas. O próprio templo era resultado de toda a contribuição das riquezas e belezas e talentos da nação. As próprias paredes eram feitas de ouro. Todos os recipientes eram de ouro maciço. Trompetes eram feitos de prata. As vestes sacerdotais tinham diamantes e pedras preciosas nelas. E a flauta era usada no clímax da cerimônia. Todo o dia se passava com aquelas belas e esplêndidas cerimônias aceitando as oferendas do povo e as bênçãos dos sacerdotes e, no final, tudo era amontoado no altar e as pessoas esperavam que a presença divina, o fogo sagrado dos alturas, a Glória de Deus, viesse e aceitasse a oferta. E a última coisa que era feita, depois de tudo, depois que o coral tivesse cantado e que os trompetes tivessem tocado com a fanfarra e todas as coisas bonitas tivessem tomado lugar, o último passo era tocar a simples flauta. A razão para isto é que a flauta era considerada como sendo a coisa mais doce, o adoçamento da oferenda. Depois de uma refeição temos as sobremesas e era como se fosse oferecida uma completa refeição a Deus e o ultimo passo fosse o doce som da flauta.

E quando a ultima nota adocicada da flauta esvanecia, os céus, por assim dizer, se abririam espiritualmente e as pessoas de fato veriam um leão de fogo e revelações angelicais e um leão de fogo divino devorar as ofertas. Este momento era tão elevado, um clímax espiritual tão alto, que os sacerdotes disseram, "Vejam, todos os recipientes deste templo são feitos de ouro, cobertos em ouro e diamantes e pedras preciosas, como pode que o momento que coroa a cerimonia ser feito com uma simples flauta de caniço? Isto não nos parece apropriado". Então eles se reuniram, discutiram e decidiram que aprimoramentos precisavam ser realizados, eles tinham que melhorar a flauta. Então eles chamara artesão de Alexandria no Egito, os mestres artesãos do Egito. Eles vieram para Jerusalém, tomaram a flauta sob seus cuidados e a cobriram com ouro, fizeram belas e refinadas gravuras das letras mais místicas e coisas lindas, e então a cravejaram com pedras preciosas, então quando você olhava para a flauta ela brilhava com uma luz cegante. Mas quando chegou a hora, aquele momento de ouvir a doçura da flauta, quando a tocaram... Não funcionou, não soava bem, ela havia perdido toda a sua doçura pois, com todo aquele ouro e metais pesados a simplicidade da madeira havia se perdido.
Então os sacerdotes se reuniram e disseram, "Vejam, acho que cometemos um erro". Então eles chamaram os sacerdotes de Alexandria e quando estes chegaram, resolveram cuidadosamente todo o ouro e todas a pedraria e não sobrou nada além da flauta que havia sido de Moisés. E quando chegou a hora, a doçura havia retornado.

A moral da história? As vezes a simplicidade é o melhor.


¹ Não tenho certeza se é isso mesmo, busquei nos tradutores da vida as palavras que pareciam se relacionar ao termo apresentado.
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Mensagem por Nauta Qui Fev 03, 2022 9:11 pm

Xangô era o rei de Òyó. Apesar de também ser um grande guerreiro, como Ogum, ele é um rei estabelecido em seu reino que havia sido fundado por seu pai, Oranian, administrando suas riquezas, forças e povo com justiça. É um orixá vaidoso (a ponto de trançar seus cabelos, como as mulheres), que gosta de estar bem apresentável, de ter abundância à sua disposição, beleza, opulência e principalmente poder. Um dos seus maiores prazeres é a comida a ponto de ser uma de suas falhas, pela qual foi punido por Oxalá após abandonar Oxalufã sobre uma pedreira para ir atrás de um prato que considerava irresistível, sendo que a partir daquele momento nunca mais pode comer em pratos de cerâmica ou porcelana, apenas em gamelas de pau como os animais. O instrumento de poder de Xangó é o Oxé, um machado de duas lâminas. Ele comanda os raios e cospe fogo pela boca. Deixo abaixo dois itans de Xangó que fizeram parte de minhas reflexões recentes:

O primeiro peguei na internet:
Xangô era rei de Oió, o mais temido e respeitado de todos os reis.
Mesmo assim, um dia seu reino foi atacado por uma grande quantidade de guerreiros que invadiram a cidade violentamente, destruindo tudo e matando soldados e moradores numa tremenda fúria.
Xangô reagiu e lutou bravamente durante semanas. Um dia, porém, percebeu que a guerra tornara-se um caminho sem volta. Já havia perdido muitos soldados e a única saída seria entregar sua coroa aos inimigos.
Resolveu então procurar por Orunmilá e pedir-lhe um conselho para evitar a derrota quase certa. O adivinho mandou que ele subisse uma pedreira e lá aguardasse, pois receberia do céu a iluminação do que deveria ser feito.
Xangô subiu e quando estava no ponto mais alto do terreno foi tomado de extrema fúria.
Pegando seu oxê, machado de duas lâminas, começou a quebrar as pedras com grande violência.
Estas ao serem quebradas, lançavam raios tão fortes que em instantes transformaram-se em enormes línguas de fogo que, espalhando-se pela cidade, mataram uma grande quantidade de guerreiros inimigos.
Os que restaram, apavorados, procuraram os soldados de Xangô e renderam-se imediatamente pedindo clemência. Levados até ao rei, os presos elegeram um emissário para servir-lhes de porta voz. O homem escolhido foi logo se atirando aos pés de Xangô. Desculpou-se pedindo perdão. Humilhando-se, explicou que lutavam, não por vontade própria, e sim forçados por um monarca, vizinho de Oió, que tinha um grande ódio de Xangô e os martirizava impiedosamente.
Xangô, altamente perspicaz, enxergou nos olhos do guerreiro que ele falava a verdade e perdoou a todos, aceitando-os como súditos de seu reino. Assim tornou-se conhecido como o orixá justiceiro que perdoa quando defrontado com a verdade, mas que queima com seus raios os mentirosos e delinqüentes.

O segundo, extraído do livro "Lendas Africanas dos Orixás" de Pierre Verger:
Xangô construiu um palácio de cem colunas de bronze. Ele tinha um exército de cem mil cavaleiros.
Vivia entre suas mulheres e seus filhos.
lansã, sua primeira mulher, era bonita e ciumenta. Oxum, sua segunda mulher, era coquete e dengosa. Obá, sua terceira mulher, era robusta e trabalhadora.
Sete anos mais tarde, foi o fim do seu reino:
Xangô, acompanhado de lansã, subira à colina Igbeti, cuja vista dominava seu palácio de cem colunas de bronze.
Ele queria experimentar uma nova fórmula que inventara para lançar raios.
Baoummm!!!
A fórmula era tão boa que destruiu todo o seu palácio!
Adeus mulheres, crianças, servos, riquezas, cavalos, bois e carneiros. Tudo havia desaparecido fulminado, espalhado e reduzido a cinzas. Xangô, desesperado, seguido apenas de lansã, voltou para Tapá. Entretanto, chegando a Kossô, seu coração não suportou tanta tristeza. Xangô bateu violentamente com os pés no chão e afundou-se terra adentro. lansã, solidária, fez o mesmo em Irá.
Oxum e Obá transformaram-se em rios
e todos tornaram-se orixás.

Xangô, orixá do trovão, Kawo Kabiyei le! lansã, orixá da tempestade, Êpa Heyi Oiá! Oxum, orixá das águas doces, Orê Yeyê ô!
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